quarta-feira, 4 de abril de 2018

As luzes

São três as luzes. 
A primeira é a luz do sol representada pelo arcano 31. O sol é luz que atinge, inquestionável, de cima para baixo. A outra luz vem das estrelas, no arcano 16,  também em movimento vertical, mas pulverizada. Uma luz antiga e intermitente, que só se pode ver em plena escuridão. A terceira luz é a que vela. Está na carta do caixão, número 8, tem a ver com o luto e com tudo aquilo que se adquire a partir da elaboração da perda. Todas iluminam, mas todas convocam a uma tarefa. Não se pode olhar diretamente para a luz do sol e sim para seus reflexos. O sol esclarece, mas - por outro lado - pode ofuscar. É preciso um justo olhar - dotado, a um só tempo, de confiança e de abertura à dúvida. As estrelas guiam, sempre guiaram, os que as souberam ler. Elas regem e dão sinais, mas - mais uma vez - é preciso estar atento. As estrelas pedem fé, mas alertam: fé não é adesão inconsequente, é também pesquisa, estudo, iniciação. Já a luz que vela, essa é dura e infinitamente trágica. Mas traz consigo um consolo: não há morte sem vida, não há fim sem recomeço. Entretanto, apesar de ser um movimento natural, não é imediato. É preciso se empenhar nessa transmutação, afinal o luto é um trabalho. Clarissa Pinkola Estés escreve que quem vira o bebê de cabeça para baixo na hora de nascer, provoca as contrações e traz o bebê para fora do ventre é a morte. É desse estranho e profundo entendimento que trata esse arcano.    







quinta-feira, 24 de agosto de 2017

6 - As nuvens


Sempre que falo da carta das nuvens meu primeiro impulso é recorrer à metáfora da visão: há algo que não está sendo visto. As nuvens constituem um véu, um anteparo, um falsa aparência que se coloca entre aquele que precisa ver e a coisa que deve ser vista. Não se trata, entretanto, de algo que não está visível por ter sido escondido ou por portar uma natureza inacessível (como poderiam mostrar a carta da Chave ou dos Livros se acompanhadas por outras cartas de supressão e corte). Penso que o que as nuvens encobrem diz respeito ao próprio olho que vê, fala de um olhar que se distrai com o supérfulo para não ter que encarar o fundamental. A carta das nuvens convida à coragem de mirar naquilo que, de fato, precisa ser enxergado. 





René Magritte - O Espelho Falso - 1928

O hinduísmo chama o chacra frontal (Ajña) de terceiro olho e acredita-se que esse local seria consagrado à intuição e às percepções sutis. Acredito que, não poucas vezes, as nuvens convocam uma atenção especial a essa forma de visão sutil. Não a visão que tudo apreende porque se distancia e se separa das coisas, mas o olhar que quanto parte do todo, mais consegue ver. Ver é sempre questão de parcialidade e uma das grandes lições que as nuvens vem trazendo é: tudo é parcial, tudo é ponto de vista e tudo é instante. O arcano 6 vem, sobretudo, lembrar desse movimento tão necessário: menos fixação e mais movimento. Tudo passa e, só com o olhar atento a essa verdade aguda, é que se pode verdadeiramente ver. Ou, como escreveu Cecília Meireles: "Multiplica os teus olhos, para verem mais."

sábado, 4 de março de 2017

que a vida é cigana







"Oh abre a roda/ deixa a cigana trabalhar/ ela tem o peito de aço/ e o coração de um sabiá"

Combinação: Árvore (5) e Montanha (21)

                           

O baralho cigano é composto de 36 arcanos, o que torna fácil a memorização dos significados padrão, mas exige muito  na hora de fazer falar as relações entre os arcanos. Uma das epígrafes do livro "Tarô: a máquina de imaginar" é de Oswald Wirth, que diz: Adivinhar é imaginar com justeza. Essa justa imaginação, ao meu ver, é um combinado entre intuição, abertura ao impessoal e capacidade de imaginar as muitas relações entre as cartas. Cabe lembrar que o Povo Cigano é um povo dançarino e que talvez seja uma chave para o oráculo cigano compreendê-lo como um oráculo que dança, ou ainda, que para ser lido é preciso ser compreendido-em-dança. Cada consulente traz questões singulares e é preciso fazer as combinações dançarem até produzirem uma narrativa única que irá responder à especificidade da questão. Esse, me parece, é um dos grande desafios de quem se propõe a abrir esse oráculo: produzir multiplicidades a partir de uma gramática com poucos elementos. 

Por exemplo, na combinação entre as duas cartas expostas acima: a carta da árvore fala sobre processos, tem relação com questões de sáude, pode se referir à família. Para mim, a árvore fala sobretudo de um resultado que tem relação direta com suas raízes.  É um arcano que fala do que vem à superfície a partir de um processo de enraizamento. No Yoga a postura da árvore é aquela na qual um dos pés está bem enraizado no chão enquanto o outro se dobra em direção a parte posterior da coxa oposta e as mãos se unem em prece em frente ao peito ou sobre a cabeça. É sobre aquilo que se enraíza para possibilitar a invenção de outros equilíbrios. A árvore é também um dos símbolos de Iroko, Orixá que personifica o tempo. Dizem algumas mitologias que Iroko é árvore ancestral por onde os demais Orixás desceram à Terra. Seja por qual via for, a árvore fala de um eixo fixo e ancestral que possibilita o crescimento e própria criação da vida, múltipla e móvel como ela é.   

A montanha, por sua vez, também fala de processo, mas um processo análogo a uma travessia montanhosa. Fala de percalços e provações, mas também da força divina de Xangô: fala de justiça, da justa medida entre o empreender movimento e avançar. A postura da montanha no Yoga é com os dois pés bem fincados no chão, os braços levemente separados do corpo, os olhos em um ponto fixo, o corpo todo preparado para entrar em alguma postura desafiadora de equilíbrio. É uma postura de preparo e prontidão. A montanha me diz de forças telúricas, de mistérios da terra, da justiça divina que excede e escapa da nossa compreensão, das longas e justas provações, da capacidade de seguir caminhando mesmo nos terrenos menos favoráveis confiando no próprio caminho e na tarefa de caminhar.   

Uma das formas de ler a combinação desses dois arcanos é a justaposição, um domínio causando ou influenciando o outro, por exemplo. saúde/falta de saúde como causadora de justiça/injustiça. Família como causa de provação. Fixidez sendo convocada a se deslocar por um caminho de dificuldades. Processo de crescimento causando uma experiência de fé.

Uma forma outra forma de combinar os arcanos é a sobreposição. Não a árvore como causa da montanha ou a montanha apontando para um resultado árvore, mas a árvore dentro da montanha, ou ainda, a montanha arborescendo e se enraizando. Todos os arcanos que trazem imagens de elementos ou domínios da natureza trazem a força de Gaia, esse intricado de corpos que são interdependentes, se individualizam e retornam à comunhão - em ciclo. A montanha que contém em si a árvore, a árvore que sustenta a memória da montanha. As muitas vias e travessias se acessando e apontando aos caminhos - provisoriamente - singulares.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

26 - Os livros



Penso a carta dos livros como uma metacarta: é uma carta sobre isso que se faz quando se lê o baralho, é um arcano sobre a dialética velar/desvelar. Parte do livo está na claridade e parte está na sombra, em outro deck essa carta é ilustrada com dois livros, um aberto e um fechado. A carta dos livros fala de estudos, de imersão nos saberes, mas sobretudo sobre a potência de revelação daquilo que ainda não está evidente. É uma carta sobre o acesso, mas não como a carta da chave que acessa locais/situações, aqui o acesso é mistérico. Tudo que os livros possibilitam acessar é da ordem da revelação. É importante notar que esse arcano às vezes vem para lembrar da impossibilidade de tudo revelar, da necessidade de que algo permaneça oculto: para que seja dia aqui é preciso que seja noite em algum lugar. Para ouvir é preciso calar. Para trazer algo à frente é preciso que algo resista enquanto fundo. É também o arcano que nos lembra da nossa capacidade de trazer à luz  saberes ocultos, da nossa possibilidade de acessar o que em nós não está evidente. Gosto de lembrar a cada consulente que em algum nível ele já sabe tudo que o oráculo pode revelar, o oráculo serve como linguagem onde esse saber se re-organiza e se expõe. É uma gramática que serve para nos lembrar daquilo que há no fundo dos nossos apetites e à flor das nossas peles. O oráculo serve para nos convocar a estar à altura do que viemos fazer aqui. Os livros é a carta, enfim, que  nos adverte de que é preciso conceder sempre com esse quinhão irrevelável de nós mesmos e de tudo que há. 



segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

1 - O Cavaleiro



O cavaleiro abre o baralho. É o gesto crucial, o arcano que traz todo o ímpeto, toda a volúpia do que começa. É o instante em que o corpo concede com o mergulho, a insensatez necessária para desviar, a afinidade com o rumor desconhecido. E é preciso notar que o cavaleiro vem em dois: é o homem, é o cavalo. Ele vem a galope, traz algo de uma animalidade, qualquer coisa que desvia da civilização. Penso naquela baleia que depois de anos de cativeiro decide, um dia, engolir a própria treinadora. O cavaleiro tem algo desse gesto inesperado, de uma rebeldia incendiária, de um itinerário indomável. O cavaleiro fala de pisar na terra com passo de bicho, de adquirir uma velocidade selvagem. Ele traz mudanças, injeta velocidade, provoca deslocamentos. Fala de rumores externos, mas também do sagrado descontentamento que nos motiva a mudar. Ele traz mensagens, é o intermediário, o que circula. Penso em Mercúrio, penso em Exu, penso nas Amazonas, penso em Perto do Coração Selvagem, quando Clarice Lispector escreve

nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo


O cavaleiro vem montando esse cavalo que é um pouco ele próprio e um pouco qualquer coisa que ele desconhece, nessa dança com a face selvagem (com o fora, com a alteridade). O cavaleiro negocia com as forças não dóceis do mundo para que a vida se realize em seu fluxo.