segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

1 - O Cavaleiro



O cavaleiro abre o baralho. É o gesto crucial, o arcano que traz todo o ímpeto, toda a volúpia do que começa. É o instante em que o corpo concede com o mergulho, a insensatez necessária para desviar, a afinidade com o rumor desconhecido. E é preciso notar que o cavaleiro vem em dois: é o homem, é o cavalo. Ele vem a galope, traz algo de uma animalidade, qualquer coisa que desvia da civilização. Penso naquela baleia que depois de anos de cativeiro decide, um dia, engolir a própria treinadora. O cavaleiro tem algo desse gesto inesperado, de uma rebeldia incendiária, de um itinerário indomável. O cavaleiro fala de pisar na terra com passo de bicho, de adquirir uma velocidade selvagem. Ele traz mudanças, injeta velocidade, provoca deslocamentos. Fala de rumores externos, mas também do sagrado descontentamento que nos motiva a mudar. Ele traz mensagens, é o intermediário, o que circula. Penso em Mercúrio, penso em Exu, penso nas Amazonas, penso em Perto do Coração Selvagem, quando Clarice Lispector escreve

nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo


O cavaleiro vem montando esse cavalo que é um pouco ele próprio e um pouco qualquer coisa que ele desconhece, nessa dança com a face selvagem (com o fora, com a alteridade). O cavaleiro negocia com as forças não dóceis do mundo para que a vida se realize em seu fluxo. 

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